Os brasis de Petronílio

O acesso é de chão batido e de cor pardacenta. Em volta, carrapichos e “unhas-de-gato”. A visão que se apresenta após uma breve viagem do centro de São Raimundo Nonato à localidade Baixão da Guiomar, na periferia da cidade, é o retrato do “Brasil Real”, em oposição ao “Brasil Oficial”.


Quando os casebres se entremostram pelas frestas deixadas pela vegetação esturricada, com suas portas e janelas empenadas pela ação do tempo, percebe-se uma correria geral. Crianças saltam dos escaninhos da vila e, com sorrisos reveladores, apresentam-se com olhares desconfiados e assustados aos visitantes.


Logo, logo, o patriarca é comunicado que há gente nova na redondeza. De uma casa mais afastada e não menos simples, a figura alta e esguia se assoma à porta de sua residência, e, em marcha serpenteada, desloca-se, com vagar, em direção a mim.


Só o sorriso estampado no rosto quebra o ar compenetrado do ambiente. Os dentes, que um dia completavam o sorriso, já não existem mais; a pele, marcada pelo tempo, não esconde os enfretamentos; as roupas, que quase não mais se seguram, esganadas por um cinto improvisado, cobrem o corpo franzino, mas hígido do ex-combatente; o chapéu “coroa” o personagem, que um dia – embora pertencente ao Brasil Real – reforçou as fileiras do Brasil Oficial, liderado pelas forças do governo ditatorial de então.


Embora com a vista anuviada, decorrente de uma catarata, seu Petronílio nos saúda com alegria, depois que seu neto – Edmilson – informa que é o Júnior, filho da “cumade Zi”, que veio visitá-lo para conhecer um pouco da história do nosso povo.


As cadeiras de macarrão surrado são oferecidas. Pergunto, inicialmente, sobre a idade e a saúde. Sem titubear, o personagem aponta com firmeza: “noventa e três anos”.


Queixas: nenhuma. Aliás, apenas uma: não poder mais, em razão da idade, cavalgar e atirar de rifle, combatendo os “insurgentes” que um dia queriam “acabar com o mundo”.


E, a partir daí, com o fogo crepitando dos olhos, conta os detalhes da batalha sangrenta que enfrentou na década de 1937, ao lado das tropas do governo para conter a ânsia dos revoltosos de um movimento cunhado de “Pau-de-Colher”.


O sobrevivente do “Movimento Pau-de-Colher” ou “Guerra dos Caceteiros” – “guerrilha” ocorrida nas cercanias de São Raimundo Nonato, conta saudosamente sobre os acontecimentos dessa batalha que ceifou vidas, e que não é contada nos livros de nossa história.


Com uma memória privilegiada, o ex-combatente relata os fatos minundentemente. Os dias na mata, a fome, o sofrimento, a sede e os embates ocorridos dias após dias, são relatados com vigor e regozijo, dignos de quem se sente órfão de um tempo que, segundo ele, era bom.


Entre risadas e compenetramento, seu Petronílio ajuda a atravessar o fim da tarde já divisando a noite. Suas histórias, contadas a vários visitantes, são repetidas como se fossem inéditas. E ele não cansa de contar peripécias que o tornaram um lendário morador da vila.


Dona “Bila”, companheira inseparável de décadas, ajudava, volta e meia, a lembrar de um ou outro fato. Sem interrompê-lo, só se manifestando nos momentos de cansaço do velho guerreiro, dizia, ao contrário dele, que a vida, hoje, é melhor. E, com galhardia, apontava para o aparelho celular recém-recebido, como presente, de sua filha que mora na capital do “Brasil oficial”.


Quando a escuridão já tomava conta do lugar, pois as poucas luzes não conseguiam arrefecê-la, resolvi partir.


Seu Petronílio, convicto de sua importância, estendeu sua mão calejada e desejou-me boa sorte, contando, no entanto, com minha volta qualquer dia para detalhar-me mais sobre os causos que conformaram aquele acontecimento belicoso.


Ao me afastar, deixei para trás um pedaço bem-contado da história de enfrentamento entre os brasis, convicto de que o produto dessa peleja só agigantou mais ainda o fosso que separa as elites do povo, e que os brasis, que um dia se encontraram num campo de batalha, agora se escondem um do outro, fartos e refratários, prometendo a não se reencontrarem tão cedo, a não ser, novamente, num campo de batalha.


Caso acontecesse esse “reencontro” improvável, acredito eu que esse campo de batalha, estaria, de novo, “coalhado de petronílios”.

Picture of Zeferino Júnior

Zeferino Júnior

Todos os textos
WhatsApp
Facebook
Twitter